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Desafio Literário

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Desafio Literário Empty Desafio Literário

Mensagem por Tânia Souza Dom 18 Out 2009 - 20:39

Uma expressão, um ditado popular, uma citação, frase ou palavra pode libertar-se do sentido comum e, em determinados momentos, tomar dimensões inspiradoras, deixando-nos inquietos, sugerindo histórias diversas.

O tópico Desafio Literário convida: vamos escrever contos a partir de temas sugeridos. O prazo para postarem os contos produzidos consiste em 15 dias a partir da data de postagem do desafio.


Desafio Literário Ampulheta

Inspirações nefastas!


Última edição por Tânia Souza em Dom 18 Out 2009 - 21:13, editado 1 vez(es)
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Desafio Literário Empty Desafio Literário - Feliz Aniversário

Mensagem por Tânia Souza Dom 18 Out 2009 - 20:49

E o meu desafio para os colegas é...

Feliz Aniversário!

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Mensagem por BOI Seg 19 Out 2009 - 0:01

Feliz Aniversário

O assopro com força que fazia tremular a chama era desanimado. As palmas quebravam a serenidade que tinha fumaça cinza saindo da vela. Trinta anos! “Parabéns!” Todos sorriam, todos estavam alegres. Enquanto minha mulher cortava o bolo eu me retirei, peguei uma cerveja e me joguei no sofá. Estava exausto. Quantas pessoas me congratulavam? Quantas me congratularam? Ou melhor, quantas não? “Feliz aniversário!”. A cerveja gelada me refrescava um pouco. Eu ainda via a fumaça da vela dançando no ar...

Alguns amigos bêbados relembravam algumas façanhas minhas, outras deles. Todos riam. “Feliz aniversário!”. Alguém chegou atrasado. Outra gravata... Tenho saudade da época que ganhava brinquedos. Antes eu ficava animado para o meu aniversário chegar. Ansioso. Hoje, o que eu não quero mais é ganhar mais presentes. Ou melhor, gravatas. Minha mulher me entrega um pedaço de bolo. Eu como sem vontade. Alguém me chama ao longe para que eu possa confirmar uma história. Apenas aceno com a mão. Faço positivo sem saber o que é e todos riem. Como outro pedaço do bolo. A fumaça da vela já não estava lá...

Trinta anos! Me encaminho para a mesa onde a vela repousava. “Feliz aniversário!”. Alguém que saia se desculpando a pressa. Houve um tempo que as coisas eram mais simples. Acendo a vela novamente e encaro a chama. Minha mulher sorria conversando com Paulo, amigo meu do trabalho. Se é que posso chamá-lo de amigo... Eu sabia que havia algo entre os dois. Se pudesse apagar isso tão facilmente quanto essa vela...

Assopro. Gosto de ver a chama tremular e se apagar. O risco da fumaça levantando dançando. Serena. “Feliz aniversário!”. Alguém interrompe o momento. Trinta anos! Estou velho. Ou melhor, estou novo. Estou novo demais. O que minha mulher acharia de eu pedir o divórcio agora? Fazer um grande escândalo na frente de todo mundo? Volto a acender a vela e volto a apagá-la. Seria tão bom ver ela tão embaraçada na frente de todo mundo. Chamá-la de puta na frente de todo mundo... Mas eu não tenho coragem. A fumaça é tão bonita...

Acho que não resta nada a fazer. “Feliz aniversário!”. Abro a porta para aquele casal ir embora. Pessoas boas, como a maioria aqui. Tranco a porta, guardo a chave no bolso. Trinta anos! Imagino como vou sair no jornal. Vão me chamar de louco? Vou até a cozinha e pego a garrafa de álcool. Queria ter um motivo melhor para fazer isso do que simples vingança. Acho que quero mais é aparecer. Pouco importa. Corto a mangueira do gás. Vou até a sala onde todos estão. Todos sorrindo, todos felizes. Não... Não acho que seja por vingança. Eu apenas gosto das chamas dançando. É uma pena eu não poder ficar para ver a fumaça...

Acendo a vela. Me dirijo até a minha esposa. Ela sorri para mim, está encabulada. Paulo provavelmente já teria marcado o próximo lugar para o próximo encontro. Abro a garrafa de álcool e jogo nela. “Você está louco?! O Que você pensa que está fazendo?”. Ela grita. Sem responder atiro a vela nela. O fogo sobe, ela grita. Todos se desesperam. Alguém me agarra pela gola. Está gritando comigo. Eu não me importo. Só quero ver a chama. A chama e a bela fumaça negra que saía tão serena de minha mulher...

Paulo corre com ela para a cozinha. Vai jogar água nela para apagar. Desespero. Todo mundo desesperado. Por que somente eu consigo apreciar a chama? A chama e a fumaça. O gás... Tão lindo a bola de fogo... A bola de fogo e a fumaça. Um silêncio momentâneo antes da grande agitação. Todos correm em direção à porta. Ninguém consegue abrir. O fogo se espalha rápido pelo carpete. Outra pequena bola de fogo quando pega na garrafa de álcool. Assopro as chamas e grito para mim mesmo: “Feliz aniversário!” O fogo sobe em minhas pernas. Todos gritando tentando abrir a porta. A chama é linda. E essa fumaça...
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Mensagem por Barreto Seg 19 Out 2009 - 9:03

Boi, ótimo conto. Um marido desleixado e entediado com um objetivo subitamente cruel.

Já percebi que o nível será elevado!!!!

Abraço
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Mensagem por Victor Seg 19 Out 2009 - 14:06

Feliz Aniversário

Victor Meloni

Inapropriadas. Quantas vezes consideramos tal, as
insossas congratulações que nos acometem na suposta jucunda data a ditar-nos os
anos, as inexoráveis lamentações do tempo. Estas, travestidas de júbilo,
revolvidas em felicidades ignorantes. Tudo bem, devem estar considerando tais
argumentos fruto de uma personalidade amarga, que apanhou com assaz vontade da
vida, que nos é tão indiferente. Não estão? Os que sim, enganam-se. Os que não,
estão por entender. Teus pés pressionam o abismo da compreensão. Já, já, a
queda.



Aqui, nesta manifestação crepitante, onde aplausos
e assovios acotovelam-se para ver quem tem razão, a alegria conspurca minha
paciência, macula a temperança que insiste no jugo pungitivo com minha
verdadeira ânsia. A canção penetra afligindo, negando olvidar-me das suas
vibrações, que mergulham nefastas no poço da minha angústia. E este é
inescrutavelmente profundo. Até mesmo a escuridão fez questão de esquecê-lo.
Mais uma vez. E mais uma. O opróbio assalta-me, intensificando, olhem o
absurdo, da canção que se apodera sem descanso da já pusilânime renitência que
os abriga do réprobo que brilha, decidido, lá no abismo daquele poço dantes
lembrado. E sua luz começa a rutilar, putativa. Sua natureza ominosa inicia
resposta lutulenta, gélida, à irritante demonstração de felicidade que pulula
alienada, que se multiplica confusa, embora a caterva que me rodeia, me afaga,
brade vindouros dias de paz e prosperidade. Todos afirmando em contumácia seus
desejos. Agora a bolha estoura! Rompe-se o liame que prendia-me às suas
cortesias, às suas crassas afabilidades sociais. O paroxismo da ofensa? O que
atravessou o umbral? O que rompeu a fina côdea que resistia ao sanguissedento a
dormitar nas abissais poças do grande buraco devoluto de piedade a lograr em
minha alma? Aquela última e apelativa sentença!




Feliz Aniversário! Feliz Aniversário! Feliz
Aniversário!


Um coro ensurdecedor, deflagrando o encovado com suas vozes energúmenas de solícita faustosidade!
Beócios! Não sabem que data comemoram? Não sabem! Do esquipático? Do comum? Da
ascendência fescenina que um dia me assaltou pela sanha do redivivo de apetite
percuciente? Ou do resultado natural entre o encontro lascivo entre meus pais?
Não sabem! Não sabem! NÃO SABEM!

Feliz Aniversário! Feliz Aniversário! Feliz
Aniversário!



A fera insurge! O demônio guincha rascante! A besta
redargui às salvas com o grito a recender soez! Não comemorem mais! O inferno
mostra garras, ulula a insana volúpia, a fim de beber, afogar-se no medo, na
dor, na morte. A ineludível bocarra a obliterar gargantas que gritam!



Feliz Aniversário! Feliz Aniversário! FELIZ
ANIVERSÁRIO!



A festa obumbra-se do mais denso, inconcusso e
fétido dos fuscos. Antes de comemorarem, agora, olhem o fosco dos meus olhos.
Talvez vejam o monstro a bruxulear lá no fundo.


Última edição por victor meloni em Ter 20 Out 2009 - 7:51, editado 2 vez(es)
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Mensagem por Tânia Souza Seg 19 Out 2009 - 15:14

Feliz Aniversário

Por Tânia Souza



Não gosto de aniversários, não ofereço nem aceito presentes. Enerva-me sobremaneira a convivência com pessoas que fazem destes momentos algo além do simples cotidiano. Há tempos minha consorte aprendeu a aceitar essa ojeriza, datas me assustam, me apavoram. Datas impedem que sejam relegados ao esquecimento instantes que deveriam ser eternizados apenas na memória. No entanto, nem sempre essa fobia estivera comigo. Na manhã que definitivamente me faria horrorizado com comemorações, Arildo, meu padrinho, vestiu seu melhor terno, perfumou-se e, mal o sol nasceu, saiu de casa tendo nas mãos angulosas as mais belas flores do campo e uma carta em papel elegante. Pude vê-lo percorrendo a cidade segurando estas preciosidades. Era um sujeito alto, magro e soturno e estava noivo, antes de noivo, amargara longa viuvez. Muito tempo se passara até que voltasse a viver a vida e tivesse a coragem de abandonar a fidelidade a Ana, seu primeiro amor.

Foi a última vez que vi os passos rápidos de meu estranho conselheiro. Quando as estrelas começavam a surgir e ele não voltou, a noiva desesperou-se, cruzava as pequenas ruas em busca do noivo e ninguém sabia do seu paradeiro. A cidade parou em busca de Arildo, mas o homem simplesmente desaparecera. Por toda noite procuraram, entretanto, somente no dia seguinte, alguém se lembrou: era outubro e todos os anos, naquela data, Arildo levava flores para sua falecida esposa no cemitério da cidade.

A pequena comitiva dirigiu-se apreensiva ao cemitério, eu seguia apenas de longe, admirava-me muito mais aquela comoção tão rara que a ausência do padrinho. Distraído entre as lápides, apenas ouvi quando encontraram a carta. Corri a tempo de ver sobre o túmulo, ao lado de flores cuidadosamente arranjadas, um papel amassado jazia.

Era a carta escrita por Arildo, uma carta que o delegado leu com apreensão. Nas letras caprichosas, lia-se uma mensagem e quase com espanto ouvíamos e imaginávamos a imagem sisuda do padrinho:


Feliz aniversario amor.

Desculpe-me as olheiras, o rosto pálido. Confesso que esta noite não pude dormir, tamanha ansiedade tomava-me que o sono se foi e a cama parecia repelir-me. Eis-me aqui com teu presente, por muito tempo pensei no que te oferecer nesta data tão especial, um presente que mostrasse meu amor e a eterna fidelidade que sempre te dediquei. Decidir não foi fácil, estive conversando com pessoas diversas e cada uma sugeria-me algo, alguns, tolos, não entenderam a relevância desse momento, outros, misteriosamente, pareciam conhecer e entender os desejos de meu coração, pois esta é uma data especial, eterna. Hoje é nosso aniversario de casamento; hoje, quero apenas oferecer minha promessa de que, ainda que tenha encontrado uma nova companheira, para sempre te amarei. Receba estas flores amor. Aguardo o dia que novamente estarei em teus braços.

Para sempre teu

Arildo


Um silêncio respeitoso e comovido pairou no ar quando o delegado fez uma pequena pausa, entretanto, antes que a pequena aglomeração começasse a falar, o homem que representava a lei limpou a garganta e prosseguiu a leitura, a voz grave levemente alterada:


É nosso aniversario de casamento e também eu tenho um presente, eis que ainda nesta noite, dormirá enfim em meus braços. Feliz aniversário meu amor.

Para sempre tua,

Ana

Em letras trêmulas, destacavam-se estas rubras palavras, palavras que penetraram no imaginário dos que ali estavam e por muito tempo seriam relembradas. As testemunham e, posteriormente, firmas reconhecidas em cartório confirmaram: aquelas letras disformes foram escritas com sangue e traziam a caligrafia da falecida Ana.

O delegado abominava o que as provas revelavam e por muitos dias buscou uma explicação racional, todavia, somente quando conseguiram autorização para abrir o caixão, encontraram o corpo de Arildo. O horror da descoberta abalou-me profundamente, apavorando minhas noites por muitos anos, eu que contrariando a todos espiava e corajosamente aproximei-me da cova reaberta, pude ver novamente meu padrinho. A face em decomposição deixava entrever um terror absoluto. Nas mãos feridas, podíamos notar a ausência de um dos dedos, e nos demais víamos ossos gastos nas pontas, unhas quebradas e cobertas por sangue enegrecido que parecera ter escorrido entre os dedos dilacerados por farpas da madeira. Unhas que marcaram profundamente a tampa do ataúde. Foi-nos impossível não imaginar as tentativas desesperadas que teriam se realizado na tentativa de mover a tampa do caixão. Para nosso maior espanto e pavor, os ossos que outrora foram as mãos da nobre Ana, guardavam firmemente o dedo arrancando de Arildo, despojado da aliança de noivado que agora brilhava no dedo da horrenda caveira. Arildo encontrara a morte enlaçado ao abraço possessivo de seu primeiro e eterno amor.
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Mensagem por Celly Borges Seg 19 Out 2009 - 23:42

Feliz Aniversário

Por Celly Borges



Feliz aniversário, eu gritava embaixo da janela.

Era noite e ela apareceu, no quadro iluminado da janela, claro que sendo ela, não
precisaria de luz artificial.

Sempre a imaginei como minha esposa. Com nossos filhos. Seriamos a família mais
feliz, e nesta noite eu lhe daria o presente que ela merecia.

Feliz aniversário, eu gritava segurando a caixinha que encerrava o anel.

Eu a vi descer, assim que a chamei, veio com o semblante angelical, linda como
sempre, aquele sorriso iluminava minha vida. Não poderia existir sem ela.

Feliz aniversário, eu gritava cada vez que lhe fincava a faca em seu coração.

Ela nunca mais sorriria para outro homem como a vi fazer naquela manhã, ela jurou
nunca tê-lo visto antes, mas ele esbarrou nela e pediu desculpas, e ela sorriu. E eu vi.

E deixei, ali, em seu dedo, o anel, seu presente de aniversário, coloquei o meu, e
deitei ao lado dela. Contemplaríamos juntos, a luz das estrelas.
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Mensagem por Barreto Ter 20 Out 2009 - 18:21

Que isso companheiros?...

Terror e Horror alternam-se num pêndulo genial.

Ótimas obras. Celly, Tânia, Meloni e Boi estão com as mãos afiadas.

Ainda não escrevi uma linha sequer!!!!

bounce

Quando tive tempo, não tive inspiração.

Quando estava ocupado, também a inspiração não foi soprada no meu ouvido.

Abraços
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Mensagem por Barreto Qui 22 Out 2009 - 10:44

Amigos, é imprescindível que o conto do participante tenha o título FELIZ ANIVERSÁRIO?

Creio que não, mas quero sanar esta dúvida.

Abraços.
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Mensagem por Tânia Souza Qui 22 Out 2009 - 13:04

Salve Barreto, não precisa não, o tema inspirador é o "feliz aniversário" ( nos casos, não foram muito felizes, Razz )
seria até bom termos titulos diferentes né.....

bounce (só para não perder a oportunidade)
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Desafio Literário Empty UM PRESENTE PARA ELPÍDIO

Mensagem por Pacheco Sex 23 Out 2009 - 9:04

O sol ia alto naquele dia. O calor causticante não perdoava quem quer que fosse. As folhas das plantas estavam murchas, e murchos também pareciam estar os outros seres viventes. Alguns cachorros descansavam à sombra, sob as marquises, com suas línguas gotejantes penduradas no canto da boca. As crianças subiam a rua com suas pesadas mo-chilas e bochechas coradas. Algumas mulheres prendiam suas roupas ao varal. Era bom aproveitar enquanto a chuva não vinha. Os velhos... Ah os velhos! Alguns estavam senta-dos às praças, ou jogando milhos aos pombos, ou jogando damas com seus companheiros. Nem um desses casos era o de Elpídio.
Elpídio era um senhor que parecia ter uns cem anos, um dos mais velhos de todo o lugarejo. Mas nem ele mesmo sabia exatamente sua idade. Ficava o dia todo caminhando com dificuldade por aí, apoiando-se em sua bengala. Às vezes ficava na praça, ora assis-tindo aos jogos de seus amigos, ora conversando com alguém que atirava alimento para as aves. Na porta de um bar qualquer, chutava um cachorro que dormia tranqüilo, abanando a orelha para afugentar as moscas. Dali assistia as crianças retornarem da escola. Um mero espectador. Quisera ele ter tido netos, um cachorro ou simplesmente ter aprendido a jogar damas.
– Feliz aniversário Sr. Elpídio! – disse um vizinho. Ele respondeu com um res-mungo qualquer. Para ele não havia motivo para comemorar.
Já havia tentado o suicídio várias vezes. Numa ocasião, amarrou a corda de sisal em um galho de um abacateiro, pôs o pescoço no laço e saltou. Depois de muito se debater e sufocar, sua vista turvou-se. Pensou que seria desta vez, mas... O galho não resistiu ao seu peso e quebrou. Lá se foram ao chão Elpídio, a corda e a madeira que antes de chegar ao solo já tinha atingido a cabeça do velho. Noutra vez, atravessou na frente de um ônibus no centro da cidade. O homem sentiu um estalo na cabeça e desmaiou. Acordou no hospi-tal. Foi socorrido e não sofrera nada além de um osso quebrado... Na mão! Uma falange.
Sua ânsia pela morte era justificada pela vida que levava. Não havia conseguido nada de bom e ela parecia ser um grande sofrimento. Devia a tudo e a todos e sua aposen-tadoria mal dava para se alimentar. Se ficava o dia inteiro fora de casa, era porque sua permanência dentro daquelas paredes era um martírio. Na verdade, seus maiores proble-mas eram motivo tanto para matar-se como perambular ao léu. Surgiram há muitos anos...
– Mais um ano, hein Sr. Elpídio? Feliz aniversário! – disse outra pessoa, com uma entonação na voz como se falasse a um bebê. Isso era o mais ridículo de se envelhecer. Na maioria das vezes se é tratado como um recém nascido. Outra vez o velho rabugento nada respondeu.
Por trás daquela máscara de velhinho do interior, pacato, havia outra pessoa. Elpí-dio nunca foi um bom homem. Desde cedo aprendeu a roubar. Os artigos eram dos mais variados: Um lápis na escola, as frutas no quintal do vizinho, algumas moedas de sua mãe, o troco do dono do bar... Viciou-se nisso. Buscava sempre uma coisa de valor maior. Sua ganância por mais dinheiro e poder o consumia...
A primeira morte foi aos treze anos. Banhava-se à tardinha com um colega num ri-acho próximo de casa. Num mergulho do amigo, um grande volume de água atingiu seu rosto. Ficou furioso. Segurou a cabeça do outro imersa, até que ele parasse de se agitar. Soltou o corpo depois disso, e deixou que a corrente o levasse. Procuraram a criança por dias. Nunca ninguém desconfiou dele. Sua única testemunha tinha ido por água abaixo. Viciou-se nisso.
Em certa época, algumas garotas do bairro sumiram misteriosamente. Elpídio sem-pre foi um belo jovem e não era difícil atraí-las para a mata ou lugares ermos. De posse de uma faca cortava o pescoço da vítima e banhava-se com o sangue que esguichava em jatos intermitentes. Acreditava que o líquido quente e vermelho o deixaria eternamente jovem... Desejava agora, não somente o dinheiro, mas a eternidade...
Foi assim por anos a fio. Uma das mulheres, antes de morrer, olhou-o com ira. Su-as conjuntivas estavam raiadas de vermelho, devido à força que fizera para desprender-se do malfeitor.
– Vais me pagar desgraçado! – disse ela quase sem forças.
Foi então que seus problemas surgiram.
Não havia nada demais em sua rotina diária. Depois do trabalho, colocava uma boa roupa, tomava umas cervejas e lá pelas dez horas já estava deitado em sua cama, resso-nando. Sua casa parecia serena... Nesta noite, quando o relógio de parede deu doze bada-ladas o inesperado aconteceu. Elpídio acordou com um choro insuportável. Esfregou os olhos e levantou, caminhando descalço em direção ao som. Afinal de onde viria? E quem era essa pessoa que estava aos prantos? Parecia ser de dentro de sua casa, mas ele morava sozinho... Então...
Chegando à cozinha avistou uma moça com uma longa camisola branca, com as mãos no rosto, soluçando de tanto chorar. Ele não pensou em nada e se aproximou.
– Quem é você? – disse ele. As lágrimas da mulher tocaram fundo em seu espírito como nunca qualquer coisa tinha feito.
De repente a mulher saltou sobre ele. Sua face transmudou de angelical para mons-truoso em questão de segundos. Seus dentes pontiagudos buscavam a carne de Elpídio que lutava com todas as suas forças para livrar-se. As unhas negras da criatura estavam finca-das em seu ombro e a dor era fora do comum. Sentia o líquido quente escorrer pelas suas costas e o embate parecia não ter fim. Ela grunhia coisas inaudíveis ou incapazes de serem entendidas e seu hálito pútrido dominava as narinas do homem, causando engulhos.
– Eu não disse que ia me pagar, peste! – esbravejou o monstro no corpo de uma mulher.
Elpídio tinha o corpo cheio de chagas que latejavam fortemente. Acordou no outro dia sem uma sequer. As dores, porém, continuavam. Todos os dias sua angústia era a mesma. À meia noite, doze badaladas eram a porta de entrada das almas que ele havia despachado para o além mundo. A cada dia, mais uma se juntava à mulher que o tinha atacado a primeira noite. Tornaram-se dezenas.
Para fugir de seu destino trancava a porta de seu quarto, mas isso de nada adianta-va. Quebrou o relógio, mas isso também não tinha efeito. Mudou de casa, enforcou-se, atirou-se embaixo de carros... Nada parecia solucionar seu drama. E todo dia que passava, toda noite mal dormida, todo ano que surgia, parecia mais tenebroso. Por isso não come-morava mais nenhum aniversário. E nesse não seria diferente. Preparou-se para o encontro que ele desejava ser o último.
Sentou-se à beirada de sua cama. Exatamente no horário de costume, sombras se esgueiravam pelos cantos das paredes e surgiam por baixo dos móveis. As pessoas atra-vessavam as paredes ou abriam a porta, entrando no cômodo para fazer-lhe companhia. Algumas caminhavam agachadas ao teto como aranhas... Enquanto uns choravam, outros esbravejavam maldições para Elpídio. Se ameaçasse retrucar, atiravam-se sobre ele, arra-nhando e mordendo, arrancando-lhe pedaços de carne. Por um momento desvencilhou-se. Estava desesperado. Suas mãos enrugadas e trêmulas empunharam uma pequena faca cor-tando os pulsos. Tudo estaria terminado, mas para sua surpresa, não sangrou uma gota sequer.
– Ah... Então é este o presente que quer este ano? A morte? – disse uma das almas, gargalhando insanamente.
O velho então sentiu uma forte dor no peito. Curvou-se até o chão, babando e ge-mendo. Olhava suplicante para as almas que sorriam. Tinha os olhos marejados e estava ofegante. Sua vista foi escurecendo lentamente. Seu braço esquerdo tinha adormecido, bem como todas as extremidades de seu corpo. Deitou ao chão sem forças e sorrindo. Fi-nalmente estava tudo acabado!
Abriu os olhos lentamente. Estava em uma assustadora e espessa escuridão. Perce-beu que não respirava, não tinha mais necessidade disso. O frio parecia atingir-lhe os os-sos e passou a mão na pele, para se aquecer, sentindo feridas purulentas que doíam mais do que antes. O cheiro de podre empesteava todo o ambiente. Ouviu gargalhadas que eco-avam distantes como em uma caverna de mármore.
– Ora Elpídio... Não achou que faltaríamos à sua festa, não é?
– Não! Por favor, não! – gritava ele, chorando, enquanto sentia seu corpo ser devo-rado por todos os lados.
– O teu presente somos nós. Feliz aniversário...


Última edição por Pacheco em Sex 27 Nov 2009 - 7:18, editado 4 vez(es)
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Mensagem por Barreto Sáb 24 Out 2009 - 14:15

Pacheco, conto bem escrito e uma boa ideia.

Amigos, quando melhorar dessa terrível crise renal que estou passando, tentarei escrever algo para nosso desafio.

Abraços
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Mensagem por Pacheco Dom 25 Out 2009 - 7:48

Há um bom tempo que o Barreto está prometendo o tal conto...
Acho que essa história de crise renal é só para, subitamente, nos presentear com uma boa obra...

Está ganhando tempo, hein Morpheos?

Estimo melhoras amigo!

P.S.: Chá de quebra-pedra para o Barreto!
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Mensagem por Tânia Souza Dom 25 Out 2009 - 10:35

Ei Barreto, melhoras para ti...

Eu disse que voltava com as impressões sobre os contos, entonces, cá estoy...

O conto do Boi me faz pensar nas tempestades, mesmo sendo um comentário meio clichê, imaginei a aparente calmaria que esconde algo borbulhando, no caso, o ódio e a vingança, diria que contundente. A vida em si é torturante e o personagem procura a pior forma de escape. Muito bom.

Eu disse para a Celly que o conto dela me assustou, porque estava lendo e esperando outra coisa quando de repente, no meio de um feliz já surge uma faca, é daqueles contos do estilo da Celly, bem rápidos e afiados. Tenho medo de vc "cenourita".

O Barreto falou uma coisa legal, estes contos são mais próximos da realidade, de uma cruel realidade.

Sobre o conto do Victor, nossa, eu leio as produções do Victor e fico pensando, pensando, não são faceis de comentar, mas ao mesmo tempo, merecem ser comentadas, pois trazem uma mescla de preciosismo na linguagem com o mais puro sentimento de terror, algo que admiro principalmente neles: a atmosfera. Estamos acostumados a contos digamos assim, mais lineares, os contos do Victor trazem uma atmosfera de angústia, de horror, causam uma terrível impressão. Seria um demônio, seria um vampiro, que fera é essa que espreita esses convivas incautos que aplaudem sem saber da fera que em breve irá devorá-los? A linguagem rebuscada não nos impede de sentirmos uma sinfonia do loucura e sombras neste conto.

Gostaria que você nos falasse um pouco sobre essa produção, se quiser, claroooo affraid .


O conto do Pacheco, nosso novo atormentado, ou atormentador, rs ( gostei disso) é bem sombrio, li e fiquei pensando na eterna repetição, em que um castigo não é apenas um castigo, um pesadelo não é apenas um pesadelo, é o inferno em que cada vez, quando o pesadelo parece acabado, sofremos e sofremos novamente. Ótimo conto!

Valeu!!

E o desafio continua. bounce
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Mensagem por Afonso Dom 25 Out 2009 - 22:18

Salve, salve, gente bonita e criativa! Passo por aqui para apreciar os contos dos amigos!

BOI - ( Feliz Aniversário )
Gostei do teu conto. Início despretensioso, comum, narrativa que aborda cenas tão familiares e corriqueiras que parece que é com a gente, mas.... que nada, a calmaria apenas guarda uma bomba em gradativa e inexorável ebulição. E quando pensamos que o cara é um homem comum, percebemos e, a esposa do demente e o amante dela, também percebem tardiamente aquele clássico caso de um lobo vestido com pele de cordeiro, o psicopata de rosto comum, porém extremamente perigoso. Muito bom!


VITOR MELONI - ( Feliz Aniversário )
Vitor e seu vernáculo ululante a desafiar-nos, pobres mortais, mais afeitos ao ordinário literário de mais fácil digestão, no entanto, aqueles que se esforçam por entendê-lo sempre encontram boas coisas, não há dúvidas, desta feita, com ares de prosa poética de fino trato intelectual. Agora, cá pra nós, o aniversariante em questão não merece presente, não! Vai de retro!


TÂNIA - ( Feliz Aniversário )
História horripilante, daquelas de estilo antigo que eram contadas por nossos avós a beira das chamas tremeluzentes do fogão a lenha... é, eu tive este privilégio. O teu conto, Tânia, me lembrou aqueles momentos. O ciúme da morta foi levado a enésima potência, não cabendo recurso ao marido que, apesar da tentativa de fuga, foi enredado pelo sobrenatural de ser “transportado” pra dentro do caixão... ui, ui, ui... que morte horrível. Como sempre a contista Tânia me encanta com sua criatividade.


CELLY - ( Feliz Aniversário )
Adorei a ordenação pragmática e objetiva do conto. Texto breve, conto minimalista com conteúdo suficiente para visualizar bem a cena impactante, bem diferente daquela porcariada minimalista, sem pé, nem cabeça, que infesta o Recanto das letras. Como diria o Vitor: Parabéns, guria!

GEORGE PACHECO - ( Um presente para Elpídio )
George Pacheco, que grata surpresa vê-lo por aqui. Te adianto que estás na companhias de gente muito boa, com idéias, criatividade e conhecimento sobre o mundo fantástico. Tenho certeza que você, o mais novo membro da confraria, que já agitou bastante por aqui, vai gostar das pessoas do fórum. Você está entrando no trem agora, alguns já saíram, outros deixaram-no temporariamente, mas hão de subir novamente, outros, volta e meia, sentam-se neste banco, ajudam e sempre voltam com a experiência. O legal é isso, sabe, sempre tratamos muito bem os novos passageiros.

Seja bem vindo, meu bom!

E quanto ao conto, tenho certeza que o nosso trem passa a usufruir de outro contista que promete por estes lados. Se o conto da Tânia me fez lembrar as histórias dos meus avós, o teu conto, as aventuras e traquinagens de Elpídio me trouxeram a memória aqueles gibis de terror, preto e branco, que eu devorava quando adolescente: cripta, espectro e afins. O personagem tinha plena liberdade para fazer a maldade que lhe era do gosto, mas no fim, bem no fim, no último quadrinho, fechava a história com ele se “arrebentando” todo. Muito bom, cara
!
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Mensagem por Victor Seg 26 Out 2009 - 8:45

Tânia Souza escreveu:Ei Barreto, melhoras para ti...

Eu disse que voltava com as impressões sobre os contos, entonces, cá estoy...

O conto do Boi me faz pensar nas tempestades, mesmo sendo um comentário meio clichê, imaginei a aparente calmaria que esconde algo borbulhando, no caso, o ódio e a vingança, diria que contundente. A vida em si é torturante e o personagem procura a pior forma de escape. Muito bom.

Eu disse para a Celly que o conto dela me assustou, porque estava lendo e esperando outra coisa quando de repente, no meio de um feliz já surge uma faca, é daqueles contos do estilo da Celly, bem rápidos e afiados. Tenho medo de vc "cenourita".

O Barreto falou uma coisa legal, estes contos são mais próximos da realidade, de uma cruel realidade.

Sobre o conto do Victor, nossa, eu leio as produções do Victor e fico pensando, pensando, não são faceis de comentar, mas ao mesmo tempo, merecem ser comentadas, pois trazem uma mescla de preciosismo na linguagem com o mais puro sentimento de terror, algo que admiro principalmente neles: a atmosfera. Estamos acostumados a contos digamos assim, mais lineares, os contos do Victor trazem uma atmosfera de angústia, de horror, causam uma terrível impressão. Seria um demônio, seria um vampiro, que fera é essa que espreita esses convivas incautos que aplaudem sem saber da fera que em breve irá devorá-los? A linguagem rebuscada não nos impede de sentirmos uma sinfonia do loucura e sombras neste conto.

Gostaria que você nos falasse um pouco sobre essa produção, se quiser, claroooo Desafio Literário Affraid .


O conto do Pacheco, nosso novo atormentado, ou atormentador, rs ( gostei disso) é bem sombrio, li e fiquei pensando na eterna repetição, em que um castigo não é apenas um castigo, um pesadelo não é apenas um pesadelo, é o inferno em que cada vez, quando o pesadelo parece acabado, sofremos e sofremos novamente. Ótimo conto!

Valeu!!

E o desafio continua. Desafio Literário Icon_bounce

Claro, Tânia, que falo sobre o meu texto (rsrsrsrsr). Ah,
antes, obrigado à você e ao Afonso pelos comentários! Bom, como havia
dito, pelo msn, a inspiração para ocorreu-me quando escutava a quinta
sinfonia de Beethoven. O clima angustiante, e ao mesmo tempo
libertador, da obra-prima empurrou-me para uma história que provocava, em mim,
as mesmas impressões. A personagem principal, em grande angustia,
causada pela sua nova natureza, não entendia como era possível
festejar, aniversariar sua nova condição. Óbvio que seus amigos,
colegas, enfim, não tinham (até aquele momento, coitados) como saber de
tal. Mas, a criatura, perturbada, ainda indignada com seu "presente"
danado, não conseguia enxergar na famosa comemoração algo bom, e apenas
percebia o júbilo da maldição que, agora, lhe condicionava. A loucura
inerente ao mal, a falta de consideração sobre outras possibilidades,
estavam todas ali, pressionando o aniversariante que, agora, entendia
ofensivo (mais uma vez, em função da sua alterada ascendência) as
salvas, as palmas, todos os padrões aos quais tem direito aqueles que
"comemoram" mais uma primavera. Demônio? Vampiro? (os "meus" nosferatus
são todos demônios! rsrsrsrs) Um Lobo? Que bicho é esse? De uma coisa
eu sei: Não queria encontra-lo por aí! rsrsrhauahuahauhau
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Mensagem por Edson Tomaz Seg 26 Out 2009 - 22:12

Bom gente, aí vai minha contribuição. Peço desde já desculpas ao Barreto. Não foi minha culpa, pois não o conheço. Foi culpa da tal pedra nos rins...rs.

Feliz Aniversário, Barreto!

Tudo começou com uma leve dor nas costas, que Barreto imaginou ser mais uma das muitas provocadas pelo banco do carro. O infeliz que projetou aqueles bancos devia ser condenado a passar o resto da eternidade sentado neles, para ver o que era bom.

O problema foi que o dia ia passando e nada da dor cessar. Já tomara dois anti-inflamatórios e nada. Não conseguiu produzir muita coisa no trabalho, sem falar no mau humor. Às cinco horas, deu graças a Deus quando o sinal de saída tocou. Foi para o carro quase correndo.

Quando chegou em casa, não encontrou ninguém. Nem um bilhete. Mas com a dor piorando cada vez mais, não conseguiu nem raciocinar sobre onde poderiam estar a mulher e os meninos. Melhor assim: eles iam encher o saco pra que ele fosse ao médico, que era a coisa que ele mais detestava na vida.

Tudo que o Barreto mais queria naquela hora era tomar um banho, engolir mais um anti-inflamatório e cair na cama. Era uma quarta-feira, ia ter jogo do Brasileirão, mas ele não ia agüentar.

Jogou a roupa de qualquer jeito sobre a cama. Se a mulher visse ia falar pra caramba, mas ia ser um banho rápido. Depois ele dava um jeito. Estava louco pra dar uma mijada, o resto podia esperar.

Posicionou-se em frente a privada e foi aí que o inferno abriu as portas: sentiu uma dor tão lancinante na altura dos rins que acabou vomitando. No afã de se apoiar para tentar não sujar o chão, escorregou e foi direto com o queixo na válvula de descarga. Já zonzo de dor, acabou desmaiando.

----xxxx----


Quando a mulher do Barreto viu o carro parado na garagem, xingou mentalmente a mulher do bolo pela milionésima vez. Não bastasse aquele trânsito de São Paulo, quando chegou na casa da mulher o bolo ainda não estava pronto. Aguardou mais de quarenta minutos para que terminasse de assar e pudesse ser montado e confeitado. E tome mais trânsito na volta. Tudo isso regado a bagunça dos dois moleques, que insistiam em não ficar quietos de jeito nenhum.

Mandou os meninos entrarem na frente e distraírem o pai. Só estava preocupada para que ele não visse o bolo. Ele não ia lembrar que era seu aniversário no dia seguinte; na verdade, se não fosse ela, ele não ia nem lembrar que essa tal coisa chamada aniversário existia. Nem o seu próprio, nem o de ninguém, especialmente o aniversário de casamento.

Perdida em seus pensamentos, assustou-se com o grito de “mãe”, que veio num tom muito mais desesperado do que de costume.

----xxxx----


Barreto trocou as contorções por causa da dor pelo tiritar de frio. Por que enfermaria tem que ser um lugar tão frio desse jeito? É pra gente morrer e o cadáver já ficar preservado?

Irritado – odiava hospital – Barreto praguejava baixinho contra o lençol fininho que não lhe protegia do frio, contra aquele maldito camisolão, que deixava a bunda a mostra cada vez que ele levantava da cama, contra a enfermeira que conseguira furar sua veia e deixar seu braço todo roxo, contra o soro que pingava lentamente e, especialmente, por aquela porcaria de plano de saúde da empresa o ter colocado numa enfermaria sem televisão. Estava irritado e morrendo de tédio. Não tinha também nenhuma companhia para conversar.

A mulher e os meninos já tinham ido embora, ele ficou para observação. De certa forma, tinha que ficar feliz por estar internado. O médico disse que o plano de saúde não aceitaria pagar pela internação por causa da pedra nos rins, mas ficou claro que outra crise daquelas sem tratamento adequado e o Barreto poderia sofrer graves complicações. Então o médico explicou direitinho o que ele deveria falar caso alguém começasse a lhe fazer perguntas sobre seu problema.

- E por favor, senhor Barreto, tome cuidado. Eles perguntam primeiro e o senhor só vai saber que era o médico do plano de saúde quando vier a conta do hospital. Pode complicar minha vida e a sua.

Incapaz de dormir por causa do frio e da raiva, ficou observando pela janela da enfermaria o movimento no corredor. Mas, como já era de madrugada, só muito de vez em quando alguém de branco passava para lá ou para cá.

Não soube dizer exatamente o que era, mas alguma coisa naquele médico alto e magrelo o tinha desagradado. De cara, o jaleco branco cobria as suas mãos até a metade e seu pescoço flutuava dentro da gola. A mulher do Barreto definiria com certeza como um clássico caso de “o defunto devia ser maior”. O sujeito ficou um tempão parado em frente ao vidro, só olhando para dentro da enfermaria. Barreto ficou se perguntando o que tanto ele olhava, pois as luzes estavam apagadas e não dava para ver quase nada lá dentro com a pouca luz que vinha do corredor.

Quando o magrelo entrou no quarto e acendeu a luz na sua cara, Barreto teve que juntar toda a educação que recebera dos pais para não mandar o médico pros quintos dos infernos. Será que era por isso que médico não se refere a gente como cliente, mas como paciente? Porque tudo naquele momento parecia ser feito para testar a paciência dele. E ela estava no limite.

- Boa noite, Senhor Barreto! O médico entrou e fechou a persiana do vidro que lhe permitia ver o corredor. Apanhando o prontuário nos pés da cama, continuou - Pedrinha no rim, hein?

- Pode ser uma pedrinha, mas está doendo pra caramba. Algum motivo especial para me acordar, doutor? – Já estava matando a charada. Devia ser o tal médico do plano de saúde. Olha só que safadeza: vindo de madrugada, para ser mais difícil de alguém mentir para ele!

- Nada, avaliação de rotina. Estou vendo aqui no seu prontuário que hoje é seu aniversário.

- É mesmo? Nem lembrava.

Enquanto o médico parecia entretido em continuar avaliando seu prontuário, Barreto ficou pensando: bem, aquilo explicava porque não tinha ninguém em casa quando ele chegou. Na certa, a mulher havia encomendado um bolo e estavam preparando uma festa surpresa. Sentiu-se culpado: ela nunca esquecia uma data especial, já ele...

Assustou-se ao perceber que o médico estava com o rosto quase colado ao seu. Nem percebera que ele havia se aproximado tanto. Mas não teve tempo para nenhuma reação. Apesar de magrelo, o cara tinha uma força e tanto. Com apenas uma das mãos, agarrou o pescoço de Barreto, imobilizando-o.
Barreto se debatia, mas não conseguia se soltar. Apavorado, viu os olhos do sujeito assumirem uma cor vermelho sangue e seus caninos superiores crescerem em presas descomunais.

- Seu túmulo vai chamar atenção no cemitério. Coincidência nascer e morrer na mesma data, não é mesmo?

A última coisa que ouviu antes de morrer foi o irônico comentário do vampiro:

- Feliz aniversário, Barreto!

(Gostou? Quer saber de novos contos e eventuais edições dos antigos? Então siga-me no Twitter: http://twitter.com/edsontsilva)

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Desafio Literário Empty FELIZ ANIVERSÁRIO!

Mensagem por Flávio de Souza Ter 27 Out 2009 - 12:00

Uma data especial merecia providências tão especiais quanto, era assim que pensava. Observava o vapor nublar a superfície do vidro temperado do box durante o longo e cuidadoso banho. Deslizava a ponta do indicador direito sobre o plano úmido, descrevia vários corações recheados com as iniciais de seus respectivos nomes. Já havia separado seu melhor terno, o qual comprara exclusivamente para a ocasião. O perfume importado e os caros sapatos, que complementariam a produção para tão especial ocasião, também o aguardavam num canto da suíte. Comemorariam o primeiro aniversário do que costumava chamar de “nova fase do casamento”, e para tanto precisaria estar irrepreensível, sua esposa merecia tamanha dedicação, afinal, sempre fora uma boa companheira, mesmo durante as fases turbulentas da relação.

O período inicial fora repleto de felicidade extrema, a não ser pelas ocasionais discussões por motivos fúteis, sobretudo pelas acusações infundadas e pela falta de compreensão por parte da mulher. Para ele, o que era tratado como ciúme doentio, nada mais era do que zelo e preservação do casamento, uma instituição que a modernidade estava levando à ruína, mas isso não aconteceria com ele, não mesmo. Seria tão difícil para ela compreender que em um casamento a mulher deveria ser tratada como um bem precioso? Que era um verdadeiro tesouro do marido? Ela deveria entender, e agradecer, por ser preservada e mantida longe dos olhos revestidos de cobiça, daqueles que só desejam e anseiam a infelicidade alheia. Ao lembrar desses momentos, ele sente uma sensação ruim, percebe uma onda de inquietação invadir-lhe por completo, precisa respirar fundo e recobrar o raciocínio, afina,l tudo já havia sido superado, não existia motivo para lamentação naquela noite, apenas comemoração pela data.

As taças e a garrafa de vinho são depositadas cuidadosamente ao seu lado, os presentes e demais coisas que necessitava já estavam acomodados no automóvel. O local marcado para o encontro era distante, precisaria dirigir por algumas horas, mas a distância era irrelevante quando o que estava em jogo era algo maior, eterno, e disso ele tinha absoluta certeza. Enquanto guiava apressado, era assaltado por lembranças ingratas, verdadeiras pontadas que faziam seu sangue ferver em uma ira crua e irracional. Como seria possível aquele sujeito vislumbrar a possibilidade de tocar em seu tesouro? De imaginar que seria digno de pleitear algo que não lhe pertencia? Não, não adiantava sua esposa insistir que não estavam mais casados, que existia aquela baboseira de divórcio, nada disso era real, não mesmo. Ela seria dele para sempre, nenhum juiz poderia determinar as rédeas de sua vida.

Ah, mas as recordações também traziam satisfação, certamente, e lembrar de como cuidara do maldito intruso, daquele que ousara se intrometer em sua felicidade, isso sim, o enchia de contentamento. A maneira sórdida com a qual invadira sua própria casa, evidente, porque aquela casa era dele, por direito; o jeito sutil e sorrateiro de se esgueirar pelos corredores, oculto pelas sombras, até a investida definitiva. Ele apreciou cada momento, o frenesi enlouquecido da lâmina cortando o ar e dilacerando a carne do maldito, o sangue impuro produzindo marcas vivas nas paredes, escorrendo pela madeira envernizado do machado, maculando o recanto sagrado do seu espaço de direito.

Aquele infeliz teve o que merecia, nunca mais desejaria o tesouro alheio, porque agora, cada parte do seu execrável corpo estaria fadado a ser devorado pelos vermes em diferentes pontos daquele sítio, o mesmo sítio no qual acabara de entrar. Sua esposa o aguardava, estava protegida agora, nunca mais alguém ousaria se interpor entre eles, a felicidade nunca mais seria ameaçada.

A mesa é posta de maneira impecável, velas aromáticas queimam apoiadas em castiçais de prata, mas para ele o que mais importava era a presença do seu bem mais precioso, a adorada mulher que para sempre permaneceria sob seus cuidados. Ela estava ali, diante dele, resguardada pela mesma proteção de madeira de lei na qual a depositara há um ano atrás. Embora não apresentasse os mesmos contornos e a pele reluzente que tanto apreciava, ainda exibia o mesmo sorriso, e este permaneceria estampado pela eternidade em seu rosto. Eles mereciam celebrar a data, era o primeiro dos muitos anos que estavam por vir nessa nova união, por conta disso ele retira do bolso do paletó uma pequena caixa negra e aveludada, e de dentro dela um delicado anel dourado, no qual uma imponente pedra reluzente estava incrustada.
Suavemente ele segura a mão do esqueleto e posiciona a jóia no mesmo dedo que ostentava uma aliança, tinha a plena certeza de que nunca mais precisaria se preocupar em perdê-la, não existiria mais separação, de fato esta fora a sua melhor idéia, a única e definitiva maneira de mantê-la ao seu lado. O homem de feições rudes e envelhecidas não consegue esconder a emoção e deixa escapar uma lágrima enquanto olha para os restos mortais da mulher e diz:

- Feliz aniversário, querida!
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Mensagem por Barreto Ter 27 Out 2009 - 12:44

Mais dois ótimos contos.

Parabéns ao Flávio e ao Edson.

E quero congratular o Edson por participar pela primeira vez do FCT (fórum da câmara dos tormentos).

Edson, as pedras estão saindo.... estão rasgando o caminho, mas estão saindo.

Pachecão, já bebi muito chá... já estou até enjoado da bebida.

Em breve postarei minha contribuição.

Abraços
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Mensagem por Flávio de Souza Ter 27 Out 2009 - 13:32

Salve Povo do Além!

Deixei para comentar os textos após postar o meu, logo, aqui estou...

Boi - Vingança e chamas combinadas de maneira surpreendente, Nero morreria de inveja...

Victor - Uma fera inominável surge invocada pela falsidade cotidiana, pela falta de compreensão do significado verdadeiro das celebrações. Um texto fabuloso conduzido pelas hábeis mãos de um mestre das letras...

Tânia e Celly - As meninas utilizaram-se do que há de mais negro e perturbador nos sentimentos; o egoísmo, o desejo de posse, a insensatez, e com isso produziram dois textos maravilhosos. Tentei fazer uso dessa mesma temática, mas obviamente não obtive tanto sucesso quanto elas...

Pacheco - Texto sombrio e macabro, nos faz pensar sobre as consequências dos atos, o protagonista não poderia imaginar o verdadeiro inferno diário no qual seria submetido...

Edson - Uma visita a um hospital que faria do SUS uma brincadeira de criança...contra pedra nos rins, muito chá de quebra-pedras e...estacas...

Um abraço a todos,

Flávio bounce bounce bounce bounce bounce
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Mensagem por Tânia Souza Qua 28 Out 2009 - 22:52

Oh!!

Pobre Barreto, affraid ( o do conto )

Edson Tomaz, que participação legal, seja bem vindo!!! E que inspiração sombria esta heim? Foi da horrenda realidade ao inusitado fantástico. Gostei deste final inesperado!!!!!

Flávio, este conto é bem diferente, poxa, eu já estava imaginando já a cena, terna... de um "amor" antigo...
e de fato, bem antigo, devido aos "restos mortais" da amada (!) pale . Inusitado, gostei!!!

Ah, Barreto, melhorou? Espero que sim^^ bounce bounce


Última edição por Tânia Souza em Sáb 31 Out 2009 - 21:07, editado 1 vez(es)
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Mensagem por Barreto Qui 29 Out 2009 - 16:45

Tânia Souza escreveu:Oh!!

Pobre Barreto, affraid ( o do conto )

Edson Tomaz, que participação legal, seja bem vindo!!! E que inspiração sombria esta heim? Foi da horrenda realidade ao inusitado fantástico. Gostei deste final inesperado!!!!!

Flávio, este conto é bem diferente, poxa, eu já estava imaginando já a cena, terna... de um amor antigo...

e de fato, bem antigo, devido aos "restos mortais" da amada, rs. Inusitado, gostei!!!


Ah, Barreto, melhorou? Espero que sim^^ bounce bounce

Se melhorei, Tânia? What a Face

Acabei de expelir o cálculo renal!!!

bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce bounce

E vejam... logo depois de terminar minha contribuição para nosso desafio.

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Mensagem por Barreto Qui 29 Out 2009 - 16:55

O FELIZ ANIVERSÁRIO QUE INEXISTIU


A tarde já se despedia; o céu, carregado com nuvens plúmbeas, advertia que uma tempestade se aproximava rapidamente daquela cidade interiorana.

No exato momento em que Mara saía de seu quarto em direção à cozinha, com um pequenino calendário nas mãos, o temporal desabou. Enquanto guisava a galinha e olhava para o calendário, pressentiu que já não estava mais só; aguçou os ouvidos. Quando constatou que só ouvira a forte chuva, suspirou mais tranquila. Mesmo assim, resolveu espiar a sala. Fora dali que “captara” a incômoda sensação.

Ao deixar a cozinha, foi acometida por uma vertigem momentânea. Mara teve medo. Vira uma imagem na sala que a transtornava. A imagem de um homem macérrimo próximo à porta com um enorme guarda-chuva.

- Olá! – disse o estranho que não era tão estranho assim. Era apenas... uma pessoa há muito sumida. A voz reverberou na caixa craniana da mulher. Maquinalmente, ela arregalou os olhos, levou as mãos (ainda com o calendário) à boca e deu dois passos para trás, regredindo no corredor. Balbuciou palavras inaudíveis até ser interrompida pelo homem que tinha a pela branca como um fantasma.

- Voltei para pedir desculpas. Sei que talvez não seja o melhor momento para reaparecer...

Ela, ainda atordoada pela repentina aparição, gritou para o visitante com a face de marfim:

- Fantasma! Você é apenas um fantasma e não irá me assustar. Suma daqui agora. Morreu num dia chuvoso e noutro dia chuvoso quer ressuscitar?

- Como vão as coisas? – o ser a sua frente indagou com voz dura.

- As coisas? – ela dera um berro tão estridente quanto lacônico, ainda do corredor. A mão no colo, em puro espanto. O calendário, qual uma batuta na outra mão, oscilava acompanhando os gestos. – Só o que há são coisas ao meu redor. Todas inanimadas. Sem vida. Exatamente como me tornei. Um cadáver ambulante. Uma coisa sem vida. O nada que se movimenta. Morri naquele dia chuvoso que você sumiu com meu filho.

O homem empertigou-se. Depois pigarreou, pousou o guarda-chuva aberto no chão e foi sentar-se no sofá, deixando a porta aberta atrás de si. Era fácil notar que o homem trazia más notícias. Mara o olhava com os olhos semicerrados e marejados. Falou baixinho, tentando controlar a cólera.

- Onde ele está? – Gerald, o marido de Mara que havia desaparecido com o filho do casal há anos, sabia que ela falava do próprio filho.

- É por isso que voltei. Hoje é aniversário dele... – o marido interrompera seu discurso para fitar a mulher.

Outro personagem acabara de aparecer na porta. Ninguém o viu chegar. Ele simplesmente aparecera ali. Era um homem alto trajando uma enorme capa de chuva que o engolia por inteiro. O capuz cobria-lhe a cabeça que estava arriada. Os braços pendidos inertes para baixo. As unhas arroxeadas, talvez pelo frio que a chuva impingia-lhe. As gotas de água ainda vertiam no chão, demarcando o local. Algumas escorriam pelos dedos rugosos. Como o sofá estava posicionado de frente para o corredor, Gerald não percebeu a chegada do estranho na soleira da porta, mas via que os olhos da mulher mudaram de direção e a feição de Mara havia assumido contornos de entusiasmo. Depois que o calendário caiu das mãos dela, ele se virou para ver o visitante que saíra da chuva.

- Quem é? – ele perguntou ficando – naquele momento – sem resposta.

Mara caminhou lentamente para perto do homem com a capa de chuva.

- Mãe... – o novo visitante murmurou.

- Meu amor, meu filho... é você!!! – Mara abraçou efusivamente seu filho que não retribuiu a demonstração de amor. Depois recostou sua cabeça no peito deste e com os olhos fechados, agradecia a Deus pela volta do seu querido filho. Foi quando notou que, apesar da súbita felicidade, algo ainda a inquietava. Era o coração de mãe que pressentia o pior. Em poucos minutos ela saberia o motivo.

Gerald se levantou num salto simiesco e fitou a cena. Ao ouvir a palavra “Mãe”, o marido achou que fosse uma brincadeira de péssimo gosto, mas a diabólica certeza o acometera quando o visitante, lentamente, retirou o capuz e descortinou o rosto exangue. A face de Gerald ficara mais branca do que já era. A expressão – desarrumada pelo medo – estava contraída. Mara abriu os olhos a fim de materializar aquele sonho e rever seu filho há muito desaparecido, mas viu o estado que seu irresponsável marido apresentava. O corpo do homem tremia a olhos vistos.

- O que há, Gerald? Não está feliz com o retorno do nosso filho? – quando ela disse “nosso filho”, Gerald experimentou um calafrio que lhe fez tremer ainda mais. Colocou as mãos tremelicantes na própria cabeça.

O marido sumido nada disse. Apenas olhava e nos olhos de Gerald podia-se ver horror, medo, incredulidade e loucura. Então, Gerald caiu de joelhos. Mara, que estava aconchegada no peito do filho e era bem mais baixa que ele, foi ao encontro do marido para socorrê-lo, pois viu que o homem estava, no mínimo, com alguma desordem psicológica. Aproximou-se perguntando:

- O que houve, homem? Não está feliz?...

- Não... – Gerald articulara a palavra com enorme dificuldade e sem retirar os olhos do filho que ainda estava na soleira da porta.

- Como não? – Mara o inquirira, agora também agachada.

- Mara, compreenda... faz muito tempo que não o vejo também – e o silêncio imperou.

- O quê? Mas como?– ela quis saber. Os olhos fixos no marido. Então, Gerald desviou os olhos da porta para os olhos de sua esposa e indagou com os lábios estremecidos de pavor:

- Como é possível? – ele segurou-a pelos ombros com extrema força.

- Ai! Está me machucando. Como é possível o quê? – ela insistiu.

- Otávio morreu há exatamente um ano. No dia em que faria dezenove anos.

A mulher vacilou e quase caiu ao receber a notícia. Os lábios vergaram-se numa parábola descendente. O rosto imediatamente ficou vultuoso. Represava o choro com extrema dificuldade.

- Como pode? – a voz saiu fina como um miado. A duras penas, virou-se para a porta. Não havia ninguém lá. Somente o chão molhado pelas gotas de água era visível para ambos. Um raio cortou o céu como uma lâmina afiada corta uma carne macia. O clarão assustou ainda mais Gerald, que julgou ter visto a cena do filho sendo necropsia no IML da capital, e ofuscou a visão de Mara.

- Deus... acho que estamos vendo coisas que não deveríamos ver! – Gerald gritou ainda horrorizado pela veracidade do delírio.

E quando Mara correu para a chuva atrás do filho com passos cambaleantes, Gerald sentou-se no sofá. O pensamento ainda no delírio que acabara de viver. O corpo ainda trêmulo pela visão que acabara que presenciar.

- Parem com essa horrível brincadeira. Onde ele está? – ela voltara toda molhada. As mãos crispadas pelo ódio. O rosto aquoso. Culpa das lágrimas e da chuva. O pranto contido pela força de uma mãe forte e obstinada.

- Não há brincadeira, Mara.

- Impossível. Não delirei. Vi o rosto de meu filho. O rosto de um homem. Não tenho essa lembrança, então como poderia tê-la delirado? - o coração de mãe sabia que aquele rapaz era realmente seu filho, mas também sabia que não era para ele ter aparecido, sabia que, pela ordem natural da vida, ela nunca mais deveria tê-lo visto.

Gerald assombrou-se com verossimilhança da ilação de Mara e retirou uma foto a fim de mostrar à mulher. As mãos ainda demonstrando seu abalo psicológico. E como um robô, ele disse enquanto olhava para noite chuvosa.

- Veja! É a foto que convidava os amigos para a missa de sétimo dia do falecimento de Otávio.

Mara viu a imagem estampada na fotografia girar, a imagem do mesmo homem que estivera ali há poucos minutos, e deixou-se cair exânime. Em um dos bolsos de Gerald, ainda havia outra prova irrefutável da morte de Otávio. O recorte de jornal que anunciava a violenta morte causada por um acidente motociclístico. Com a mulher desacordada em seus braços trêmulos, Gerald chegou à sobrenatural conclusão de que não havia delirado, mas havia visto o fantasma do próprio filho.
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Mensagem por Flávio de Souza Sex 30 Out 2009 - 19:19

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Meu amigo Barreto!

Que conto perturbador! Terrivelmente doloroso! Dá para imaginar a agonia da mãe, reencontrar o filho e logo em seguida descobrir que se tratava de um fantasma! Brilhante, meu caro, brilhante!

Um abraço,

Flávio
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Mensagem por Pacheco Sáb 31 Out 2009 - 8:52

Bom dia amigos!
Sabem, estou muito feliz em estar na companhia de tão excelentes contistas. Não duvido de que são capazes de criarem romances, igualmente estupendos. Não estou sendo bajulador, tudo que disse e que vou dizer, foi a impressão que tive ao ler os textos de vocês. Antes que continue, quero agradecer por estar aqui e desejar a todos muito sucesso na carreira de escritores. (Acredito que tenham outra ocupação). Penso em quantos bons escritores existem Brasil afora e que não tiveram essa mesma sorte. Quantos existiram na época de Machado de Assis e Lima Barreto e que ficaram escondidos, sem oportunidades. A internet derruba barreiras.
Quanto aos contos, todos me impressionaram por contar com o inesperado e eu gosto disso. Sou assíduo leitor de Agatha Christie e manipular o leitor até o final da história e surpreendê-lo é fascinante. E vocês souberam fazer isso.
O incendiário do Boi foi magnífico. Seu desinteresse pelo proprio aniversário em nenhum momento me fez pensar que fosse causado pela traição da esposa. Aliás, esse tema sempre pode ser bem explorado em contos. Parabéns ao nosso amigo bovino!
O do Victor é incrível. Seu estilo me impressiona. Eu sinceramente não consigo escrever assim, mas queria pelo menos um pouco dessa sábia escolha de palavras. A história do conto não fica para trás. Um homem atormentado por um monstro que está por emergir. Talvez todos nós tenhamos algo latente em nós mesmos. Meus sinceros para béns ao Victor!
A Tânia me fez lembrar daquelas histórias que se ouve na roça, assim como o Afonso, e tenha a certeza de que seu conto já está na minha relação dos melhores que eu já li. Muito bem escrito. Parabéns!
A Celly, com um conto curto, não deixou por menos. Abordou muito bem o tema ciúmes, sem rodeios. A cena do conto foi bem desenhada. Poucas palavras, muito bem escolhidas. Continue assim, parabéns!
O meu... Esperem aí gente, eu não vou comentar o meu. Vou comentar os comentários!
Obrigado pelos mesmos. Meu conto causou a impressão que eu queria causar e isso é muito gratificante. Era nas palavras "sombrio" e "macabro" em que eu pensava quando escrevia.
O do Edson, nosso novo amigo, também foi muito bem engendrado e como eu disse que gosto de finais imprevisíveis, também me agraadou muito. Fiquei pensando, o médico do Barreto devia ser o responsável pelo banco de sangue do Hospital...rsrsrs. Parabéns meu caro!
O do Flávio foi do c*@&! Quem poderia imaginar que o marido ciumento havia matado a mulher e o segundo esposo? E ainda mantê-la num caixão e visitá-la e comemorar aniversário? Me lembrou aqueles filmes " Contos da Cripta ". Muito bom, amigo!
O do Barreto também me impressionou muito. No começo, achei que o fantasma era o marido. Por um momento achei que fosse a esposa. Passei a pensar que aconteceria outra coisa, um assassinato por exemplo. Nunca pensei que o filho fosse uma alma penada! Muito bom, nobre Luciano! Parabéns!
Quero parabenizar também a idéia do desafio literário, assim como os exercícios a partir de imagens (que eu não participei, foi anterior a mim).
Deu para perceber que juntos, somos melhores. Aliás, isso é uma boa idéia para se criar uma Editora. Já estou vendo a placa: "CÂMARA DOS TORMENTOS - EDITORES ASSOCIADOS" Seria a solução de nossos problemas... Mas isso é papo para outra hora... rsrsrsrsrs
Mais uma vez, parabéns meus amigos e

Escrevamos!
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